Na casa número 1193 da Rua Senador Teodoro Pacheco, a antiga Rua Bela no coração de Teresina, nasceu em 1956 um menino que mais tarde se tornaria um dos nomes centrais da poesia e da memória cultural piauiense: Paulo Machado. A casa, com estilo espanhol, pertencia aos seus avós e fazia parte de um cenário urbano original desenhado por João Isidoro da Silva França. “Lá vivi minha infância e adolescência”, relembra o poeta, cuja relação com o espaço físico se traduziu, anos depois, no poema “Herança”, escrito em 1974 quando sua família precisou entregar o imóvel aos novos proprietários.
A memória afetiva e a consciência da perda marcaram profundamente sua relação com a literatura e com a cidade. “Decidi que tinha que levar algo material da casa. Eu me apropriei de um lustre da sala de jantar. Levei comigo e o tenho até hoje”. O objeto, que virou imagem em um pôster de 2008, representa também o ponto de partida para uma trajetória que se mistura à história da cultura teresinense.
O gosto pelos livros nasceu ainda na infância, estimulado pela disciplina carinhosa da mãe, que o incentivava a escolher um espaço de estudo e um horário. Aos 14 anos, Paulo descobriu a Biblioteca Pública Cromwell de Carvalho e, aos 16, teve contato pela primeira vez com o poeta H. Dobal. O impacto do poema “Leonardo” e da estrutura inovadora de “Tempo Consequente” foi um marco. “Ninguém havia me falado daquele autor. Tive que voltar várias vezes para concluir a leitura. Não havia interlocutores.”
O contato com outros leitores surgiu na escola, com a criação do Clube Estudantil de Leitura (CEL) em 1973 e a publicação do jornal mimeografado “Zero”. Foi ali que surgiu a figura do professor Carlos Evandro Eulálio como primeiro interlocutor intelectual. A paixão por Drummond e depois por Torquato Neto ampliaram o repertório e a compreensão de poesia como expressão da condição humana e da liberdade.
O primeiro livro nunca saiu. “Travessia” foi premiado em um concurso, mas os originais não foram devolvidos. Em 1975, o Caderno de Divulgação Cultural do jornal O Estado editou o primeiro texto de Paulo. No ano seguinte, viria a coletânea mimeografada Ciranda, reunindo vários autores, com capa idealizada por Hardi Filho.
Com o jornal alternativo Chapada do Corisco, editado entre 1976 e 1977, nasceu o que mais tarde ele nomearia como Geração Pós-69 — um coletivo cultural, não apenas literário, com artistas gráficos, músicos, dramaturgos, escritores e jornalistas. Ao lado de Cineas Santos, Arnaldo Albuquerque, Albert Piauhy, Fábio Torres e outros, Paulo ajudou a criar um circuito de produção e veiculação independente, com tiragens manuais e distribuição direta.
Em 1978, publicou Tá Pronto, Seu Lobo?, com 22 poemas selecionados para marcar os 22 anos de vida. Já em 1981, inscreveu A Paz do Pântano em concurso da Academia Piauiense de Letras. Embora premiado, o livro foi editado às suas expensas, e permanece fora de circulação há mais de três décadas. Em ambos os livros, Teresina é personagem recorrente, seja como paisagem urbana, seja como silêncio histórico a ser questionado.
A relação entre literatura e memória histórica foi se aprofundando. Paulo passou a investigar o que chama de memória coletiva excluída, como o caso dos incêndios durante a Ditadura Vargas, narrado no conto “Fogo”, de Vitor Gonçalves Neto. Para o Chapada do Corisco, Paulo entrevistou familiares de um sobrevivente, o mestre marceneiro Francisco Barros, que entalhou na porta de sua casa a expressão: “um dos filhos de ninguém”. O material virou matéria no jornal.
Nos anos 1990, ao lado de Rogério Newton, criou o projeto Poesia Adesiva, com tiragens de 20 mil adesivos trimestrais e colaboração de artistas plásticos e atores. A partir disso, nasceu a revista Pulsar, que mesclava entrevistas, contos, poemas e artes visuais. A revista teve vida curta, implodindo na edição final por divergências políticas internas.
Mesmo recluso a partir de 2006 para cuidar da mãe doente, Paulo seguiu escrevendo. Espera ainda reeditar A Paz do Pântano e reunir os poemas soltos, hoje fora do circuito editorial. Para ele, a memória é um dever poético e político. “A cidade não é sem memória. O que há é ocultamento. O que cabe a nós é romper o silêncio”.